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Autocuidado ou cuidado de si?


Em tempos de quarentena tornou-se comum falar em cuidado, ou ainda, autocuidado. Eu mesma, no meu último texto aqui no blog, descrevi várias recomendações para autocuidado e cuidado com os outros para mantermos a saúde mental. São as recomendações higienistas, super importantes nessa hora.

Quando se pensa sobre autocuidado, cada um tem uma dica, mas, de forma geral, as pessoas entendem como autocuidado a necessidade de cuidar de si, de modo a se sentir bem e saudável.


Mas afinal, cuidar de si não deveria ser algo inerente a cada um de nós? Então, por que se precisa tanto falar sobre a necessidade de certos hábitos para o alcance de bem-estar e de qualidade de vida?


Duvido que você não conheça uma lista dessas recomendações, onde as mais comuns incluem: ter uma boa alimentação, fazer exercícios físicos, evitar álcool e outras drogas, inclusive tabaco, controlar o estresse (essa é sempre a minha favorita), dormir bem, e a mais atual de todas, alimentar (sim, alimentar) pensamentos positivos.


Volto a minha pergunta: mas isso não deveria ser espontâneo em nós? Afinal, quem quer se alimentar mal, dormir mal e ficar estressado, seja lá o que isso for para cada um? Por que deixamos de nos cuidar?

 

Poucos pensam autocuidado como uma prática de autoconhecimento.

 

Vamos a um pouco de história. Os gregos - sim, eles mesmos, um dos grandes influenciadores de nossa cultura ocidental - por volta dos séculos I e II a.C, chamavam de ascese (áskesis) as práticas de cuidado de si que levariam a soberania do sujeito sobre si mesmo.


O cuidado de si era constituído por um conjunto de exercícios e técnicas exercidas de si para consigo mesmo, com o objetivo de modificar-se para se ter acesso à verdade (em outro texto explico melhor o conceito de verdade para os gregos).


Essas práticas não eram nem obrigatórias, nem punitivas, mas algo para ser exercido ao longo de toda uma vida. Esse tipo de recomendação também pode ser encontrada em outras tradições filosóficas, tais como as hindu no mundo oriental.

 

O cuidado de si é o cuidado com quem se é, e que, por sua vez, leva ao cuidado com o outro. A cultura de si, apesar da intensificação e valorização das relações de si para consigo, não se refere apenas ao indivíduo, mas também ao coletivo.

 

Esses exercícios, tarefas práticas, atividades diversas, que incluíam cuidados com o corpo, com a saúde, atividades físicas, satisfação das necessidades, meditações, leituras, anotações sobre livros ou conversações, rememoração das verdades, entre outros, eram capazes de criar condições para o enfrentamento da vida.


Dessa forma, autocuidado, ou o cuidado de si, para os gregos, implicaria uma afirmação da vida, do viver, não necessariamente estando ligado, apenas, a práticas impeditivas do adoecer, como muitas vezes pode parecer o objetivo de tantas recomendações que encontramos atualmente. Algo de responsabilidade pessoal e não delegado a outro.


Se observarmos bem, muitas dessas práticas são semelhantes às difundidas hoje sobre autocuidado. Então, qual a diferença? A diferença está no objetivo ou se preferirem no propósito.

 

Os gregos estavam dispostos ao enfrentamento de suas fraquezas e não a fugirem delas. Cuidavam de si para se tornarem melhores cidadãos, para se melhorarem enquanto pessoas, para exercerem um domínio sobre si e sobre suas paixões.

 

Em nossa cultura, muitas vezes, o que percebemos são recomendações destituídas dessa responsabilidade sobre si. Uma despersonalização, mecanização de ações. Cuidar de si implica necessariamente em autoconhecimento, inclusive para definir as melhores práticas de cuidado para si.


Tanto descuido consigo e com os outros, faz pensar em pessoas anestesiadas, ausentes de si, de seus corpos, desprovidas de suas capacidades de reconhecer suas necessidades, e claro, a dos outros, algo como uma descorporificação.


Não foi difícil reconhecer esse modo de estar na vida durante a quarentena. Para tanto, bastava observar os noticiários. Da negação dos saberes científicos, a incapacidade de seguir as recomendações propagadas e ficar em casa em um momento tão intenso da história (estou me referindo às pessoas que tinham o privilégio de poder ficar em casa), além dos inúmeros casos de depressão e ansiedade ativados por tudo isso. A necessidade do recolhimento social e o inevitável recolhimento sobre si, em muitos casos, pareciam encontrar uma inexperiência consigo e demonstrar uma falta de preparo para a vida.


É como se a vida não tivesse valor. Uma falta de Eros (amor) e de capacidade de afirmar a própria vida. E, claro, sabemos que isso é possível.


A boa nova é que sempre há possibilidades para transformação dessa realidade e para se estabelecer uma nova forma de relacionamento consigo e com os outros, o que nesse momento pós quarentena será fundamental.


Recuperar a possibilidade de estar em si, através de diferentes práticas, como faziam os gregos, que com uma nova roupagem se encontram disponíveis ainda hoje - por meio das artes, das práticas corporais, meditações, das inúmeras formas de terapias, entre outras - cria uma abertura para novas experiências consigo, com sensações, relações, um novo acesso ao sensível, ao sentir, que claro remeterá ao novas formas de cuidado de si.


 

Para citar esse artigo:

MENDES, Marisa F.. Autocuidado ou cuidado de si? Rio de Janeiro, 23 jun 2020. Disponível em: https://www.marisa-mendes.com/single-post/ Acesso em:


Para saber mais:

MENDES, Marisa Ferreira. O corpo no processo terapêutico. Physis, Rio de Janeiro , v. 21, n. 4, p. 1355-1367, dez. 2011 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312011000400011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 05 jul. 2020. https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000400011.


FOUCAULT, Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1985.


VENTURA, Rodrigo. A psicanálise e o cuidado de si: entre a sujeição e a liberdade. Rev. Epos, Rio de Janeiro , v. 3, n. 2, dez. 2012 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2012000200003&lng=pt&nrm=iso> acesso em 03 abr. 2020.





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